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Memórias

A Associação Vida e Justiça não poderia iniciar esta manifestação sobre
memória da pandemia sem, preliminarmente, expressar o mais profundo
sentimento de consternação  pelas mais de 710 mil vidas (março/2024) ceifadas e
nossa irrestrita solidariedade às vítimas da Pandemia de Covid-19, pessoas que
carregam sequelas, atingidas pelo luto e afetadas por todo tipo de sofrimentos
infligidos pelas consequências da doença, agravadas e amplificadas pelo
sistemática condução, desastrosa e com intencionalidade criminosa, feita pelo
presidente da República e outras autoridades a ele subordinadas. Que seja
garantido a todes, todas e todos o direito à memória, verdade e reparação.

Cirurgião de uniforme

A memória sempre tem um tanto de fato, registro ou percepção a partir  do contato direto com um objeto ou situação, mas tem sempre um quantum de invenção, de enredo e de contexto. Por isso que se costuma dizer que a memória é uma coisa viva, que se transforma, se expande e se contrai. Mas pode, se não for cuidada, ir esmaecendo e até desaparecer.


Toda a memória, por mais pessoal que seja, é atravessada pelo mundo, pela sociedade, pela história, pela cultura e está sempre em construção e em movimento. O que cada pessoa lembra, porque presenciou ou vivenciou, pode se somar ao conjunto de outras narrativas provindas de outras pessoas, mas também pelo que vem do mundo, pelas mídias e pelos livros (os didáticos têm grande importância nisso). A memória tece tramas com outras memórias e isso, importante que se diga, não a deturpa ou atrapalha, mas a fortalece, pois favorece o sentimento de pertencimento e amplia cadeias de sentidos.

No caso específico da pandemia, o que temos em curso é uma inominável
tragédia atravessada pela morte, pelo desamparo e pelo luto. Podemos afirmar que temos aí um fenômeno social que impacta de forma direta e indelével a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. São pessoas afetadas pela morte de parentes e de pessoas próximas que formam sua rede de afetos. Pesquisas apontam que cerca de 9 a cada dez brasileiras (os) conhecem alguém que morreu de Covid-19 e que cerca de 40% tiveram entre os mortos alguém próximo como parentes e amigas(os). Tudo isso só se agrava se considerarmos as sequelas à saúde e à vida social, como no caso da orfandade.

Dor, sofrimento, luto e desamparo associam-se à instalação ou agravamento de vulnerabilidade sociais e cultivar a memória é a oportunidade de cuidar, pois não se elabora subjetivamente e não se repara socialmente no silêncio do esquecimento. Compartilhar memórias, em contextos protegidos e acolhedores, é a possibilidade de curar feridas pela construção de sentidos, pela identificação de solidariedades e pelo desfazimento dos nós, permitindo, ou mesmo propondo, olhar para a frente, apontar futuros e sonhar coisas novas.

Pensar uma resposta do estado brasileiro que seja diametralmente oposta
à que deu o atual governo federal, reconhecendo que o que houve foi um crime de estado, é o primeiro passo para a reparação e pela busca de que tais horrores não ocorram nunca mais. 

Por fim, pensamos que a tarefa da sociedade brasileira tem que estar à altura da tragédia pela qual ainda passamos, esperando que tenhamos saído, de fato, da fase mais aguda da pandemia.

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Nossas contribuições

Apresentaremos a seguir propostas visando consolidar um conjunto de recomendações que esperemos ser mais um subsídio que ajude a orientar ações mais imediatas, mas que também possam manter uma relação de coerência com
as medidas de médio e longo prazo. 

 

O que estamos apresentando tem incidência em diversas políticas públicas de responsabilidade dos entes federativos, sempre apontando para a necessária articulação com a sociedade civil e suas múltiplas entidades e movimentos. Muitas dos apontamentos que fizemos são, em última análise, iniciativas que devem vir da sociedade civil e/ou do controle social, mas estão aqui referidas como exemplos de articulações possíveis.

 

O reconhecimento do caráter trágico da pandemia não exclui que também possamos celebrar o que foi positivo, como a solidariedade nas periferias, ações  como as do MST, o esforço de trabalhadoras de  políticas públicas, cientistas e
profissionais de comunicação, entre outros exemplos, assim como casos de grande sucesso de gestoras(es) públicos.


Para fins didáticos, dividimos as propostas em quatro (4) níveis de incidência distintos, mas sempre articuladas e não estanques. Para cada NÍVEL, derivamos um conjunto de ações, tentamos conceituar o caráter das ações  propostas e,
finalmente, apresentamos como sugestão uma gama de articulações necessárias. Os tópicos apresentados em cada Nível não pretendem ter caráter exaustivo, mas pretendem ilustrar com exemplos e tornar mais inteligível o que se está propondo.

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Viagem segura

NÍVEL SIMBÓLICO

A) Ações:  

  • Criação do Memorial Nacional das Vítimas da Pandemia, incentivando memoriais estaduais e municipais;

  • Instituição de uma Comissão da Verdade sobre a Pandemia;

  • Instituir o dia 12 de março como o Dia Nacional de Memória às Vítimas Fatais da Covid-19, incentivando dias estaduais e municipais;

  • Criação a Semana Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19, a iniciar-se todo dia 17 de outubro (dia nacional da vacinação), articulando ações  estaduais e municipais;

  • Fomentar, subsidiar e apoiar   vigílias, atos inter-religiosos;

  • Outras(...).
     

B. Caráter:
O propósito é incidir no plano do imaginário social, um memorial ou uma data nacional, transmite a ideia de relevância, de reconhecimento do estado, na contramão do estado que, negligente e negacionista, descuidou da pandemia. Mostra respeito. Seria altamente impactante, por exemplo, que tivesse no dia 12 de março o reconhecimento do luto oficial, com a Bandeira hasteada a meio mastro. São ações mobilizadoras, que tratam de grandes temas e com repercussão de massa. Datas e memoriais se são “preenchidos” com a presença viva da sociedade

C. Articulações:

  • Parlamentos, nas três esferas, para a sustentação legal às iniciativas;

  • Com o poder executivo das três esferas de governo, com grande ênfase do poder municipal, pela proximidade com a vida cotidiana da cidadania;

  •  Movimentos sociais em sentido  amplo, mídias, igrejas / grupos religiosos, artistas (artes cênicas), grafiteiros, muralistas...

NÍVEL - DA PROFILAXIA SOCIAL

A) Ações:

  • Grupos de memória;

  • Sociodrama e intervenção psicossocial nas ruas, 

  • Jornadas de Memória;

  • Rodas de conversa; 

  • Clínica do Testemunho

  • Grupos de acolhimento do luto;
     

B) Caráter:

  • São ações  locais, destinadas a pequenos grupos, buscando enraizamento na base dos cuidados frente ao luto e o sofrimento provocado pela experiência da pandemia. A ênfase está no caráter subjetivo, é o que em políticas de saúde seria uma intervenção psicossocial, insere-se, portanto, em ações  de promoção de saúde com incidência no fortalecimento de laços sociais e comunitários que se desenvolvem nos territórios. O território é o conceito fundamental para esse tipo de intervenção, na busca de articular o conjunto de políticas públicas que nele incidem com os dispositivos da sociedade que já existem como grupos religiosos de tradições diversas, associações, centros esportivos ou de convivência, entre outros. São ações que ajudariam a formatar, desde a base, o cuidado e a consciência dos determinantes da pandemia. seria de grande valia o desenvolvimento de materiais pedagógicos e de apoio como cartilhas, roteiros, audiovisuais entre outros, e mesmo aplicativos para ‘smartphones’. 
     

C. Articulações:

  • Essa construção passa necessariamente pelas políticas de saúde e assistência social. Além dos ministérios que abarcam essas políticas, o Conselho Nacional de Secretários de  Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) são interlocutores fundamentais. Igrejas / grupos religiosos, sindicatos, movimentos sociais e ONGs seriam os principais locais em que ocorreriam as ações, favorecendo laços e ambientes acolhedores e protegidos, ressaltando que a existência de vínculo de convivência preexistente é sempre aconselhável. Importante a mobilização de formadores populares, psicólogas(os), psicanalistas e psicodramatistas, entre outros especialistas. Seria a construção de sinergias positivas entre ações  e iniciativas do poder público com as da sociedade civil.

NÍVEL – DO PROJETO SOCIETÁRIO

A) Ações:

  • Construção de uma consciência social que afirme que negacionismo nunca mais, que abarque toda a sociedade;

  • Elaboração e medidas de contingência para as emergências sanitárias com protocolos e procedimentos que envolva os profissionais e também a comunidade;

  • Mobilização social em defesa do SUS; 

  • Fortalecimento da atenção básica;

  • Instituição de fundos e dispositivos constitucionais garantidores de medidas para  emergências sanitárias independente de  governos, ou seja, como políticas de estado. 

  • Criação de Comitês de enfrentamento às epidemias desde os

  • municípios.
     

B. Caráter:

  • São ações  formativas, estruturadoras de projetos societários que tenham a vida como valor fundante. Importante formar um senso crítico na sociedade que valorize a ciência, compreenda a saúde como uma construção social e como um direito humano inalienável. O cuidado com a saúde de todos e todas é um marcador social que define o grau de civilidade de uma sociedade.
     

C. Articulações:

  •  Muito do sugerido nas ações  já são formulações presentes no Controle Social do SUS, nas políticas de saúde básica e nas redes de saúde da família, agentes comunitários de saúde, controle de zoonoses, entre outros. Trata-se, em última instância, de uma retomada desse esforço de construção social da saúde a partir da experiência traumática da pandemia de Covid-19. É preciso reforçar a percepção de que o desmonte do SUS que dificultou o combate mais efetivo à pandemia vai além da questão do financiamento, mas agrega uma espécie de desmonte conceitual e organizacional em curso. Gestores Públicos, Controle Social do SUS, Conselho Nacional de Saúde (CNS), movimentos sociais e Universidades, estão entre os atores sociais importantes nessa construção.

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NÍVEL ÉTICO/CONCEITUAL

A) Ações:  

  • Incentivo à produção e divulgação de pesquisas, estudos e teses sobre a pandemia, em múltiplas áreas do conhecimento;

  • Fomento de artes, literatura, livro didático, produção audiovisual com os temas vinculados à pandemia;

  • Plano de desenvolvimento tecnológico, de insumos e medicamentos, a partir da experiência da pandemia, visando a autonomia do país na garantia da segurança sanitária.

  • Rearticulação do tema saúde e seus determinantes na formação, desde o ensino fundamental, com atualização dos currículos.
     

B. Caráter:

  • A disputa no campo científico e acadêmico busca embarreirar  revisionismo negacionista, pois não podemos ter dúvidas de que os negacionistas seguirão sua pregação anticiência, até mesmo lançando mão de pseudopesquisas, como já fazem.
     

C. Articulações:

  • Obviamente são ações  que passam pela articulação dos órgãos e dispositivos de fomento à produção científica e as artes;

  • Universidades, Conselhos Profissionais, MEC, SBPC, ABRASME, ABRASCO, OPAS são instituições dialogam com as ações  proposta;

  • No campo das artes e cultura, é importante fundamental a articulação com movimento hip hop, cordel, cultura popular, além da produção cinematográfica e mídias em geral.

Como conclusão, destacamos a importância de que haja um “espaço” institucional que possa ser o local de articulação do tema memória da pandemia.

O texto a cima é um trecho do documento enviado pela Associação Vida & Justiça ao Governo de Transição. Confira o texto na íntegra aqui

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